Por séculos, quando falamos em memória ancestral da cultura negra, vem sempre à mente a escravidão, a dor, solidão, rejeição, subserviência, humilhação e todo tipo de escárnio. Tudo foi feito e muito bem pensado, para que os negros que aqui chegaram na condição de escravos, não tivessem como deixar suas histórias e legados. É bom ressaltar que esse processo de apagamento da cultura negra, já começa na África, onde os negros capturados são obrigados a dar nove voltas (os homens) e sete voltas (as mulheres) ao redor do tronco da Baobá (árvore do esquecimento). Na cultura deles (africanos), era um ritual para fazer com que os negros, agora escravos, esquecessem seu passado e começassem uma nova vida em novas terras. A crueldade era tanta, que não bastava arrancar o negro de suas terras, matavam também sua subjetividade: guerreiros, reis, príncipes, princesas... todos agora eram escravos submissos, subjugados e sem identidade.
A elite branca de tudo fez para que, mesmo após a abolição da escravatura, os negros se vissem como pessoas inferiores e destinadas a servir e obedecer aos brancos. Foram séculos de apagamento da identidade e da cultura desse povo. Sua religiosidade, assim como tudo que fazia parte de sua cultura, eram demonizadas. Famílias eram brutalmente separadas, perdendo totalmente a capacidade de se comunicarem. Muitos negros, diferente dos brancos, se perdem na sua árvore genealógica por conta de não saberem nem mesmo o nome de seus avós, quiçá bisavós. Favelas surgem sob o pesado jugo do abandono e descaso da República que, fecha os olhos e ouvidos para as necessidades básicas de todo um povo que por séculos serviu aos interesses dos seus senhores e do país. Mas apesar de todas essas investidas macabras e perversas, o povo preto seguiu, a seu modo, preparando as gerações futuras. E hoje, vemos homens e mulheres negros e negras, resgatando suas identidades e recontando suas histórias.
O tempo do cativeiro acabou, mas a luta continua!
Homens e mulheres pretos e pretas, homens e mulheres antirracistas, formam agora um grande exército para resgatar, através da luta pelo direito, o que lhes foi roubado.
E nesse cenário de ressignificação, estão muitos Terreiros de religiões de matriz africana, que começam a repensar sobre o sincretismo, deixando de romantizá-lo; dando a ele, seu verdadeiro significado: subjugação. E assim, tirando de seus altares as imagens de santos brancos, vão dando lugar aos verdadeiros donos deste espaço: os Orixás. E, é através destes Orixás e Entidades de peles e almas pretas, que homens e mulheres de Terreiro vão redescobrindo suas memórias ancestrais. Agora, sem a interferência dos brancos racistas e sem o apagamento da sua cultura.
Cada Orixá tem seu itan (história), onde é narrado sobre sua personalidade, conquistas, derrotas, gostos, descobertas, preferências e sua atuação na formação da sociedade e na própria criação do universo.
Assim como as Entidades de Umbanda, as pessoas mais velhas também merecem nosso respeito. Afinal, já caminharam por estradas que ainda estamos conhecendo e vivenciaram experiências que ainda desconhecemos. E são elas, com suas experiências de toda sorte, que vão nos auxiliar a superar nossas dificuldades, controlar nossas emoções, desenvolver a autoestima e entender que tudo faz parte de um processo de autoconhecimento.
“a minha ancestralidade é toda a natureza que foi criada pela primeira semente viva que iniciou esse mundo. [...] Minha ancestralidade é a natureza.” (PINTO,2017https://revistas.uepg.br/index.php/praxiseducativa/article/view/19478/209209216393)
Ao buscar as histórias de nossos ancestrais, descobrimos que elas não estão somente ligadas ao sofrimento e a dor. Descobrimos a força potente que os impulsionava a seguir rompendo barreiras e preconceitos. Descobrimos exemplos de vitalidade, coragem, criatividade, fé, determinação e encantamento.
Fim que não se finda: Ir ao encontro / encanto forjando outros mundos possíveis Criando no Espaço da Criação Divina (Carlos Petrovich e Vanda Machado)
Era uma vez, há muito e longo tempo atrás, muito antes dos tempos conhecidos, nas primeiras terras que apareceram no mundo, um gigante negro bem velho, ia de tribo em tribo, relembrando a força dos espaços vazios. Sentava-se à beira do rio Ogum, deixava-se ficar brincando com os pés dentro d’água, rodeado de crianças. E, enquanto todos ficavam admirados de ver aquele tamanhão de gente jogando água pro ar, ele dizia: - Estão vendo o que faço com a água no vazio? E as crianças riam dando grandes gargalhadas, pensando que além de grandalhão desajeitado, aquele gigante era meio lelé do ori, lelé da cuca. Era Kolori. E o velho estirava o corpo de repente, levantava água com um chute, jogava água com as duas mãos e soprava a água que trazia na boca. As crianças faziam silêncio, ao ver o desenho da água no ar. E ele falava: - “Ora iê, iê ô, ora iê iê ô” – saudavam Oxum. O que eu faço cada um pode fazer. Criar formas com a água no vazio do espaço. E, continuava a falar no silêncio encantado. Era uma vez, Oloduramé (Deus supremo), que depois de criar coisa com coisa, criou os homens e as mulheres. E se alegrou do que fizera. E riu. E seu riso encheu de felicidade aqueles seres que acabara de criar. Foi então que Ele me chamou um mensageiro e disse-lhe: - Vai ter com essas criaturas risonhas. Diga-lhes que tudo isso que criei é para que elas sejam muito felizes. ... o mensageiro foi saindo e parou. Olodumaré continuando a falar disse: - Entre as coisas criadas deixei muito espaço vazio. Nesses espaços as criaturas também poderão criar. E quando tiverem aprendido a ser felizes, criando coisas no vazio elas poderão criar mundos e universos no espaço sideral. Isto me alegrará muito, concluiu Olodumaré. – O mensageiro que interrompera a sua saída, neste instante partiu montado numa estrela a caminho da terra. Quando o mensageiro desapeou da montaria estelar, subiu num dendezeiro bem grande e reuniu homens e mulheres. Lá, do alto da palmeira, do igi opê (dendezeiro), deu início ao recado para os homens. As criaturas humanas só ouviram metade do recado. Justamente aquela parte que dizia que o mundo era para elas serem felizes. Enquanto se afastavam ouviu-se uma risada debochada e longa caindo pela escadaria do tempo. O mensageiro pensou, e agora? Como concluir a missão? Olodumaré iria pedir contas. Então o mensageiro pensou, pensou e lembrou-se que as criaturas que Olodumaré inventara dormiam e sonhavam. Então decidiu comunicar-se com elas através do sonho. Era preciso que as criaturas humanas soubessem que o vazio é a matéria prima da criação divina. E neste instante teve início a nova missão do mensageiro por decisão própria. E ele vai, de sonho em sonho, dando inspiração a cada um: homem ou mulher, criança ou velho, rico ou pobre, doente ou são. O gigante negro despediu-se das crianças que ficaram sonhando e desapareceu no meio dos dendezeiros.
“Recentemente, o mensageiro esteve com Adilbênia e Lorena (autoras v. 17 (2022): Dossiê: Relações étnico-raciais: práticas e reflexões pedagógicas em contextos, espaços e tempos), e orientou-lhes para avisar às pessoas amigas, que antes de criar estrelas no universo, é preciso ajudar a humanidade a forjar novas metodologia de ensino e aprendizagem para bem vivermos no III Milênio. E só então, Ele, nos levará para criar outros mundos. Então, mãos à obra. Há muitos vazios. Vamos ocupá-los.
Vamos ocupá-los construindo novas ferramentas para a consolidação de mundos integradores onde viver, bem viver e bem querer em comunidade seja realidade para todas as pessoas.”
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